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A sujeira que deixaram os portugueses não se limpa com água¹

*available only in portuguese


“Eu determino que termine

aqui

e agora

Eu determino que termine

em mim,

mas não acabe comigo

Determino que termine em nós

e desate

E que amanhã,

amanhã possa ser diferente com elas

Que tenham

outros problemas

e encontrem novas soluções

E que eu possa viver nelas

através delas

em suas memórias”

Oração (Linn da Quebrada)


Mineira de Belo Horizonte, desde pequena ouvi mineiros belorizontinos brancos de classe média, como eu, falarem orgulhosamente do nosso principal ponto turístico: a Lagoa da Pampulha e, mais especificamente, a Igrejinha da Pampulha. É da Igrejinha, elemento da iconografia mineira, que me lembro quando me deparo com a obra de Rosana Paulino, Atlântico Vermelho. Azulejos portugueses tipicamente coloniais. Azul e branco, assim como aqueles pintados por Cândido Portinari, que dão um toque final no projeto arquitetônico feito por Oscar Niemeyer. Azulejos portugueses, elementos tipicamente usados nos pomposos palácios coloniais. Na obra de Paulino, contudo, não há opulência, orgulho mineiro, ou propaganda turística. Aqui os azulejos sangram. O passado é uma ficção que não seduz.

Atlântico Vermelho (Rosana Paulino, 2017)


Alarmes do passado anunciam um banho de sangue. Alarmes do presente anunciam um banho de lama. Rosana Paulino recostura, sutura corpos cortados, feridos, sangrados. As partes não se encaixam perfeitamente. Não é possível apagar os queloides. Não se trata disso. Mas de rebater a narrativa que foi feita, reelaborar o passado para especular o futuro.


É este o objetivo das três personagens principais de Preces precipitadas de um lugar que não existe mais, curta-metragem cearense dirigido por Rafael Luan e Mike Dutra (2020). Esperando o ônibus numa rua deserta de madrugada, Breno é levado para uma zona no espaço tempo entre o passado, presente e futuro. Lá, encontra Zuri e Akin, que lhe contam seu plano de voltar ao passado para refazer a história, pegar de volta o monopólio do futuro.


Como não poderia deixar de ser, ao retornar no tempo, Breno chega à Casa Grande. É recebido pela família colonial, servido por seres capturados e aprisionados. Descorporificados, desfacializados, desgenerificados, desindentificados e desidentificáveis. Desapossados de qualquer traço de humanidade que pudesse relacioná-los a seus donos. Transformados em uma ficção de outro, que justificasse sua dominação.

¿História Natural? (Rosana Paulino, 2016)


Breno é recebido com os melhores atrativos, comida farta e vinho. É constantemente perseguido pela filha da família, que tenta a todo custo seduzi-lo para convencê-lo a levá-la para o futuro, mostrar e dividir (deixar-se roubar?) o que é seu. Mas aqui, quem leva o espelho é ele. Vocês estão trazendo os escravos para a Casa Grande / Vocês que trouxeram o quilombo para cá.²


De volta à zona no espaço tempo entre o passado, presente e futuro, Breno, Zuri e Akin se banham em um rio caudaloso, calmo. Refletem sobre sua ida para o futuro. Como saber que conseguiram? Ouvirão histórias. Viverão naqueles para quem lutaram, na memória daqueles para quem resistiram. No futuro, serão eles quem contarão as histórias.


Voltar ao passado para recuperar o futuro sequestrado. Bulgar a linearidade, a miscigenação das realidades. Fissurar a história, deslocar a narrativa. Descolar as máscaras do arquivo colonial existente. Olhar para o sangue nos ingredientes da receita dos monumentos. Quebrar o discurso oficial. Friccionar a ficção do ponto de vista único e universal. Criar nas fendas do apagamento as raízes da fabulação.

Assentamento (Rosana Paulino, 2012)

 

[1] Reprodução de um verso da música final do filme, de Mateusfazendorock.

[2] Reprodução de frases do filme.

 

este texto foi produzido como parte da Oficina Corpo Crítico – Experimentações Críticas por um Cinema Implicado, ministrado pela crítica Kênia Freitas, durante o 22º FestCurtasBH.



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