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Pode o cinema ajudar alguém a suportar ou mudar a realidade?

*available only in portuguese

Partir, traçar uma linha.


Penso que as imagens de um cinema engajado politicamente, de um filme que toma a vida de alguém como materialidade, devem no mínimo provocar o espectador e fazê-lo desviar seu olhar habitual, assim como uma escritura que se pretende crítica. As imagens e sons do cinema não devem obedecer aos limites do quadro, mas fazer vibrar intensidades outras. A finalidade de escrever é levar o pensamento ao estado de um poder não pessoal, de suscitar sensações, estranhamentos, deslocamentos. E neste sentido, precisa-se traçar, inventar linhas, abrir o pensar cinematográfico a novas possibilidades. Usando linhas minoritárias, que escapam, se esbarram, se conectam e que podem contrariar ou confrontar.


Portanto, quem é esta mulher chamada Selbé? Uma mulher-protagonista cujo corpo-presença movimenta o quadro num filme que não está preocupado com prática discursiva de representação do outro. Propõe a diretora que Selbé se AutoRePresente. Um filme em que não há propriamente uma história pura e simples a ser contada, mas situações cotidianas marcantes, passagens e estados vividos escorrendo na tela. Uma mulher que não está a serviço do cinema, embora tenha recebido dinheiro da Unicef, ela e a diretora, para a realização do filme. É o cinema que serve a elas, e talvez estas sejam boas tarefas do cinema, as de permitir que estas mulheres confrontem o mundo, abordando duras dimensões da existência, jorrando na tela potências de vidas que desejam libertar-se de constrangimentos.


Como vemos na foto acima, Selbé é uma mulher negra. Ela habitaum pequeno vilarejo rural do Senegal na África Subsaariana, lutando para sobreviver com oito filhos e um marido ausente. Como um ritual de sobrevivência, a cada dia essa mulher se levanta para produzir algum alimento que sustente seus corpos abrigados na aridez daquele lugar afastado, excluído. Ela e outras mulheres, vizinhas e amigas, possuem um poder contraditório, o de sustentar seus muitos filhos, ao mesmo tempo que desejam ter ao seu lado os maridos – quase sempre ausentes, muito distantes de casa. Os maridos saem em busca de trabalho que nunca encontram e, quando voltam a casa, são opressores e não contribuem com a sobrevivência da família. Voltam fracassados, para fazer mais filhos e aumentar a responsabilidade da mulher. Voltam como um estômago a mais para saciar a fome diária, como diz Selbé numa cena.


Nos é dado a saber que Selbé existe e sua realidade, porque ela aceita expor ao mundo essa existência, revela a fome que violenta corpos humanos. Mas o registro não é o da lamúria. E se nada mais desse certo, pelo menos ali ela recebeu recursos financeiros para alimentar seus filhos durante um tempo, e naquele momento que ela toma a decisão de ser corpo-matéria de um filme, creio que não tenha refletido se fazer ou não este filme seria bom ou não, como às vezes fazem os atores. Porque ela não é atriz, ela tem fome. E quando alguém tem fome, não há tempo para justificativas outras, o estomago rói.


Essa mulher parece nem se dar conta que está num filme, e insiste em fabricar incessantemente qualquer coisa que possa renovar o sopro de um novo dia de vida, uma luta incansável. Não há ali trabalho, políticas sociais, nenhum amparo. Há terra seca, há desdém e descaso do mundo frente a um povo que falta. É nesse cenário desolador e áspero que Selbé é obrigada a carregar o peso insustentável de ser.


As imagens cruas realistas jorradas na tela, com luz amarelo-poeira, não estetizam a realidade, as feridas dessa mulher estão abertas para todos verem, sangrando na África negra e na tela do cinema. Não há como embelezar a dor que ela sente, que estraçalha seu corpo. E não há nem mesmo espaço para a poesia de Daniel Faria no existir de Selbé, ela não “planta cedros para os anos futuros” e nem tenta “carregar cântaros para a sede que vem”. Ela nem sabe se haverá anos futuros e tempo para a sede que vem; ela insiste em viver o presente que resta, ela RESISTE em SER e fazer viver os filhos.


Sequer a vida de Selbé cabe na elegância da composição do pintor brasileiro, paulista Almeida Júnior – obra pintada no ano de sua morte. Ele que no quadro Saudade (1899) retrata cuidadosamente a passagem de uma vida, os afetos e o sofrimento de uma mulher simples e pobre, numa atmosfera doméstica rústica, vestida de preto, que ao olhar uma fotografia evoca um passado quem não nos é dado a ver, mas a imaginar. Apresentada num ambiente sem traço de idealização, numa composição pictórica politicamente bem pensada, Almeida Júnior valoriza a MULHER, os sentimentos de uma classe social, na época e até hoje desprezada pelas elites. As cores, os tons de terra, os objetos de cena e a locação por ele escolhida têm relação com o tom de pele da mulher e com o local que habita.


Saudade, 1899, óleo sobre tela, 197 cm x 101 cm., Almeida Júnior. O quadro se encontra na Pinacoteca de São Paulo.

Selbé, mulher também pobre e simples, não tem tempo para posar, pois sua vida urge, mas igualmente merece os quadros de Faye, respeitosamente filmados. E se repararmos nos tons das cores do filme vamos perceber também esta harmonia e similaridade, sim até a palheta de cores tem importância nas imagens de um filme, no que se quer mostrar na tela de um cinema-militante.


E quem é a realizadora Safi Faye? Uma mulher, também negra e senegalesa, que hoje tem 74 anos, roteirista e diretora de cinema e etnóloga, cuja temática de seus 13 filmes – curtas e longas, quase todos documentais, abordam questões coloniais na África negra, rodados em sua maioria em vilarejos rurais. Uma estética fílmica engajada politicamente. Considerada a primeira cineasta a realizar um filme e ainda em atividade, ela leva o cinema africano para o mundo. Seu longa-metragem de estreia, Kaddu Beykat, foi lançado em 1975, e seu primeiro curta-metragem La Passante é de 1972. Em 1979, ela conclui doutorado na Universidade Paris IV- na renomada École de hautes études en sciences sociales, e estudou também na Escola de Cinema Louis Lumière. Nas palavras da pesquisadora de cinema Evelyn Sacramento, num texto sobre a realizadora, ela descreve que Faye é uma mulher migrante, uma antropóloga que utiliza o cinema enquanto ferramenta de pesquisa para se (re) conhecer, se (re) aproximar do território que lhe pertence e que lhe foi negado pela colonização francesa. Uma cineasta diaspórica que retorna ao seu país para filmar a realidade de seu povo. Completo: para filmar campos de força e resistência.


República do Senegal – Capital Dakar. Esteve sob domínio da França de 1664 a 1960.


Como relata a historiadora Ana Luíza M. S. Andrade, num texto sobre países colonizados da África, “Diferentes movimentos intelectuais das colônias francesas no início do Século XX questionaram a sua condição colonial e lutaram pela independência”; “o ano de 1960 foi reconhecido como’o ano Africano’, momento de conquista dos vários anos de submissão aos franceses”. Lembro que a colonização foi territorial e ideológica.


E o que restou da colonização? Descaso, miséria, segregação, desamparo e marcas indeléveis.


De volta ao interior do filme, Faye mostra as locações: casas velhas feitas de barro, com paredes rachadas e numa terra infértil em que os poucos alimentos possíveis são o sal colhido pelas mulheres na superfície de uma água rasa e turva, e qualquer pequeno peixe em dia de fartura. Sob um sol que não dá trégua, a Selbé resta-lhe o eterno fardo de garantir a sobrevivência de uma grande e miserável família, ela utiliza todo seu tempo e a parca energia, desde o nascer até o findar do dia, no trabalho árduo, em atos repetitivos e forçadamente obsessivos de produzir comida e realizar tarefas domésticas. Como se o papel da mulher africana pobre do interior desse Continente fosse somente o de gerar filhos, de conviver com a ausência do marido, da obrigação de ser uma mulher forte e resistente. Até quando um ser humano pode suportar tal realidade? Selbé não suportou por muito tempo. Faleceu em 2008, quatro de seus oito filhos também morreram, assim como seu marido. Não poderíamos esperar um fim redentor para sua vida.


Enquanto eu assistia ao filme sentia uma dor no peito, uma aflição intensa vendo Selbé na frente da tela carregando em seu corpo tarefas exaustivas e a responsabilidade de ser mulher, mãe e esposa, ela que sequer tinha tempo para alguma trégua ou descanso, nem mesmo para lamentar ou desistir.


O corpo de Selbé é uma potente máquina de guerra, porém em nenhum momento de sua vida há prazer algum a reivindicar ou gozar, o campo de combate dessa mulher era algo fatigante do amanhecer até o momento de dormir, numa pressão sem cessar ela lutou, procurando soluções para seus problemas, todos os dias. Sem cordas ou correntes que a prendesse, ela não estava vestida com as roupas e as armas de Jorge, porém enfrentou com coragem os dias roídos, o sol escaldante do meio dia, a fome e ausência de qualquer conforto. Mesmo encurralada a essa paisagem desoladora e sem saída, ela foi obrigada a tudo aguentar, a troco de que? Simplesmente da vida. É preciso manter os filhos vivos por mais um dia.


Confrontada diariamente com uma sofrida realidade, Selbé e tantas outras mulheres da África negra partilham nas cenas do filme conversas sobre seus deveres e a falta de direitos, a relação ambígua com os homens, os quais ainda insistiam em amar ou manter por perto, mesmo tecendo críticas a eles. Elas não são ouvidas por eles, falam entre si mesmas, não há ninguém para salvá-las de seus malfadados destinos.


Uma realidade tão dura que nem a ficção suportaria. Há uma cena do filme em que Selbé diz para a diretora que se ela não tivesse conseguido trabalho como personagem de seu filme, se não estivesse colocando sua vida na tela do cinema, teria que se virar de outro modo em busca de recursos para alimentar os filhos. Como vemos em áreas periféricas do mundo, o cinema serve pelo menos para ajudar pessoas suportar a realidade, já quem nem sempre mudanças reais são possíveis.


Um filme que remete de certa forma ao cinema vérité de Jean Rouch. No entanto, mesmo tendo trabalhado com o cineasta francês, em Selbé Faye cria um desvio em relação ao realizador europeu que, em seus filmes, mesmo nos mais etnográficos, cria uma imagem exótica do povo africano. Faye não se deixa levar por essa mirada. A estética fílmica de Selbé lembra também o neorrealismo italiano, filmes de Glauber Rocha e de outros cineastas do real.


As imagens de Faye nos dão a ver situações do dia-a-dia, no tempo em que elas realmente acontecem, um retrato da realidade ao calor do momento, e da fome, a vida em cena, as imagens e vozes do mundo de Selbé (e de tantas outras mulheres africanas), sendo gravadas sem roteiro explícito, sem enquadramentos previamente pensados. Uma câmera que parece a todo momento ter pressa, não porque o rolo do filme dura pouco, mas por causa do ritmo que a vida de Selbé impõe a elas.

 

este texto foi produzido como parte da Oficina de Crítica de Cinema – Por Um Deslocamento do Olhar, ministrado pela crítica Carol Almeid, durante o 20º FestCurtasBH.

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