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por Lira Kim

Fouyé Zétwai (2020) - Cinema de poesia como travessia para um cinema implicado

*available only in portuguese


Sob as nuvens e sobre a plantação, ressoa o entoar de um canto. A voz vira palavra e, em crioulo, ouvimos “um, dois, três...”; e a estória de uma cabritinha que desaparece sem deixar vestígio. Acusada de um crime que não cometeu, a personagem vaga por cenários em preto e branco que remontam o passado em que ainda está aprisionado um dos presentes de Guadalupe. A personagem é Anyés Noel, a quem também pertencem a voz e o texto que nos guiam pelas imagens.


um, dois, três”


Mergulhamos numa visão em que, a princípio, se repete a ausência de cores que reitera a relação de imagens de arquivo com a mesma história que é ditada por homens brancos. “um, dois três”. A montagem e o ritmo respondem à narração e ao seu andamento, constantemente contestando as imagens e a história contida nelas.“um dois três”. Um navio que deixa o porto. Um avião que nunca alça vôo. Sua decolagem é repetidamente interrompida pelo corte e o som de um tambor que nos chama de volta à terra. Anyés convida seu interlocutor para um outro embarque. Dessa vez, guiado pelo orixá da linguagem. Invertem-se céu, terra e mar; e o escorrer da água dos rios. Corporificando a própria poesia da montagem, a figura de Exu nos guia entre o plano da materialidade do filme e o da espiritualidade que o atravessa.


Nessa passagem entre planos é possível afirmar que Fouyé Zétwai (2020), dirigido por Wally Fall, rejeita as formas lineares das narrativas hegemônicas fílmicas e, também, históricas. Ao optar pelo ritmo da poesia e da música, o tempo cíclico da natureza e da memória de seus próprios realizadores, Arando as estrelas também nos move em direção a criação (ou recriação) de novas formas de saber, fazer e sentir o cinema. Um cinema, portanto, implicado, no qual as imagens estão conectadas com as do passado, do presente e as que estão por vir.


Dessa forma, nesse novo regime espaço-temporal em suspensão que se estabelece, Anyés-personagem se reencontra com a lembrança do pai. Sua voz não se materializa na trilha, quando o confronta sobre a omissão diante da violência racial. No entanto, as lacunas deixadas pelo silêncio, são preenchidas por Anyés-narradora, que no presente fílmico reflete sobre o silenciamento sistêmico de seus ancestrais e, sobretudo, suas ancestrais. Se fez necessário realizar mais uma travessia: um retorno ao passado e a cura de suas feridas. Num abraço, a memória recupera suas cores e permite vislumbrar a abertura de novos caminhos, a criação de novos futuros.

 

este texto foi produzido como parte da Oficina Corpo Crítico – Experimentações Críticas por um Cinema Implicado, ministrado pela crítica Kênia Freitas, durante o 22º FestCurtasBH.

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