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As temporalidades das mulheres de Maré

*available only in portuguese

Em Maré, me perdi. Minha primeira sessão do Festival de Curtas BH se tornou uma montanha-russa: de sentimentos, sensações e, em especial, reflexões. Durante a semana tenho refletido sobre privilégios que, muitas vezes, passam despercebidos até mesmo pelos “descontruidx”. Afinal, é um privilégio até mesmo ter os dias livres para participar de toda a programação de um festival. Me questiono ainda se esses indivíduos representados nos curtas exibidos têm acesso à extensa literatura que embasa os argumentos críticos de estudantes/profissionais/curiosos que acompanham a programação. Qual será a crítica deles sobre as produções?


É diferente a experiência de quem trabalha e estuda durante o dia, e precisa ser calculista para analisar as possibilidades de sessões a serem assistidas. Esse plural de sessão, é também, privilégio. Neste dia, com passos rápidos gastei os 20 minutos que tinha para ir do meu estágio ao Palácio das Artes. Felizmente, quando faltavam quatro minutos para apertar o play, eu já me aconchegava na cadeira da Sala Juvenal Dias.


Me acompanharam nessa jornada, quatro ou cinco pessoas – silenciosas e escondidas, que tomavam o cuidado de se sentar com o máximo de distância um dos outros. O vazio me deu paz. Sempre me percebia irritada em sessões de cinema com o barulho alheio. Seja o riso nas comédias, o choro nos dramas, os gritos no terror… Filmes de gênero geralmente carregam consigo muita interferência sonora nas exibições, algo que sempre me incomodou.


Ocupar esses espaços, que normalmente moradores das regiões metropolitanas não têm acesso, me fez também desconstruir esse olhar treinado para o repúdio ao que se difere de mim, em especial no caso de atitudes e posicionamentos. Fui atingida pelo curta de Amaranta César quando me vi admirar um dos senhores que assistia à exibição, e cantava baixinho.


Um dos primeiros cantos entoados pelas mulheres baianas representadas naquela obra, forte e imponente, ganhou coro na sala de cinema belo-horizontina. Atento à produção, o senhor negro, entoava os versos como um velho amigo da mulher que cantarolava seus lamentos. O dueto me emocionou, mais ainda que a história em si. E então eu entendi a real necessidade de se levar essas discussões aos espaços públicos.


Não é preciso ter acesso a dados empíricos para comprovar que a maioria dos participantes de eventos culturais é de classe média, branca, e cis – quando não os três. Ainda que gratuitas, essas atrações não acham seu meio pelas periferias, para o público que está sendo representado diante das telas, mas é impossibilitado de acompanhar a repercussão da própria vivência. Para mim, a força de Maré, e aí abro espaço para tantos outros curtas, está mais na relação criada entre as imagens e o público, do que no próprio enredo. É um filme que eu quero que minha mãe veja, e, se minha avó estivesse viva, gostaria que ela também pudesse ver, e quem sabe, também cantarolasse ao lado dessas mulheres.


Alguns questionamentos giram em torno do cuidado estético de Maré, como se isso, de fato, rebaixasse a obra a uma categoria de menos real, menos militante, ou menos alguma coisa. É complicado porém, delimitar até que ponto essa preocupação exacerbada com a estética incomoda, e até que ponto ela é essencial para o contexto da trama. Dito isso, a cena da mulher negra na canoa, com o barulho do remo batendo nas águas, e o movimento de câmera que gira e nos atormenta, como a própria personagem, não poderia ter sido filmada de outro modo. O cuidado com a imagem plástica neste sentido é o que permite que o espectador foque no sofrimento da mulher que procura as filhas, em meio as águas, em meio a maré. E talvez, ao focar neste sofrimento, o seu próprio venha à tona.


Mas o que esperar de um filme gravado em uma comunidade quilombola do Vale do Iguape, no Recôncavo baiano? Talvez seja esse o ponto. Essa exacerbada espera por um roteiro que instiga e atinge, por uma força artística que nos força a tomar uma atitude, enquanto, na verdade, só nos desvia da própria história. Queremos ser surpreendidos por frases de efeitos, movimentos de câmera icônicos e detalhes subjetivos que darão, posteriormente, bons debates nos cafés. E não percebemos quando colocamos as produções nessa caixinha do que se esperar de um “cinema de arte”, e por isso nos decepcionamos com aqueles que fogem do modelo.


Mas a história de Maré importa demais para ser apagada por críticas ao suposto exagero de sua beleza plástica, ou pela própria construção cinematográfica. As mulheres ali representadas, cada uma em sua própria temporalidade, de avó, mãe e filha, são retratos fiéis – e caros demais – de uma sociedade que mina potências femininas a torto e direito.


Na tela, a areia movediça do mangue no qual as meninas passam horas a fio catando conchas, lembra o medo da mãe de que a filha vá para Salvador “trabalhar em cozinha de branco”. Um medo que suga as crias para perto. Um medo de romper o cordão umbilical que une não só pais e filhos, mas aquela forte comunidade feminina. Este cordão, na verdade, é o que dá liga ao retrato da ancestralidade que Amaranta César aponta no enredo.

Volto então a minha própria avó, mulher negra do interior de Minas Gerais, que nunca viu o mar. Mas que, ainda sim, me acompanhava a cada cena deste curta, que parecia representar sua vida, só que sem mangues, e sem maré. Era como se o nosso próprio cordão continuasse intacto post mortem.


Volto também ao senhor, que foi embora ao final desta exibição, sem esperar pelas próximas. O que veio depois, a ele não importa. O estrago já estava feito. Então me pergunto, será que o cordão dele também pulsou? Que sentiu em si a força de alguma mulher da sua vida? Esposas, filhas, netas, talvez. Tal como em Maré, quando um silêncio repentino insinua o sumiço de uma das filhas, é a falta de som – no caso o cantarolar baixo do homem –, que me acorda para descobrir a desconfiguração da sala de cinema, já sem som algum. Créditos sobem.

 

*este texto foi produzido como parte da Oficina de Crítica de Cinema – Por Um Deslocamento do Olhar, ministrado pela crítica Carol Almeida, durante o 20º FestCurtasBH.

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